História de VidaHomeTrabalho infantil

COLHENDO ALGODÃO

Por 8 de janeiro de 2014 8 Comments

Tenho o privilégio de cortar cabelo com uma das maiores artistas em cabelo de São Paulo.

Sua casa de beleza é uma linda mansão e está localizada num bairro fino e nobre da capital paulista. Como se não bastasse ser artista em cabelos ela é também uma decoradora excêntrica e de uma delicadeza na mistura das flores e frutos que encanta e agrada ao mais exigente critério de decoração. Nesta ultima terça feira, estive com a Lenir. E para minha surpresa, ao passar pela recepção olhando do lado direito do grande salão logo na entrada, o que vejo? Um arranjo com um pé de algodão. As maças já estavam escurecidas e abertas deixando o branco algodão amostra dando um encanto especial naquele lugar. Ao contemplar o algodoeiro, parei e fiquei ali alguns segundos, para que viesse a minha memória todas as cenas da minha infância, enquanto colhedora de algodão:

Quatro horas da manhã!

Meu pai anuncia: “Levantando, que o dia é longo!”

Como eu gostaria que isto fosse apenas um sonho. Abro os olhos. Devagar. E rapidamente descubro que não é domingo, e não é sonho! Era preciso levantar e cooperar para que possamos sair ainda bem antes do sol despontar para a colheita de algodão.

O fogo já estava aceso no fogão a lenha. A água dentro de uma chaleira de três litros fervia enquanto um grande coador de pano, suspenso numa armação de metal e inserido dentro de um bule grande de alumínio,  já esperava, com cinco colheres bem cheias de pó de café, torrado por minha mãe com minha ajuda e moído por todos nós os filhos que obedecíamos a escala do dia entre recolher lenha, lavar louça e moer café. Aos poucos o cheiro do café invadia a pequena casa despertando o apetite para uma caneca do liquido bem açucarado acompanhado de uma grossa fatia de pão.

Enquanto isto, meu pai já tinha todos os apetrechos organizados e uma cavalo já atrelado numa carroça, que carregava tudo o que precisaríamos para a colheita do dia e também toda a nossa refeição que era pobre na diversidade mas bem abundante na quantidade.

Caminhávamos mais ou menos por uma hora por uma estrada de terra. Eu gostava demais desta caminhada. Ainda havia estrelas no céu que aos poucos iam desaparecendo com o brilho do sol que despontava majestoso no horizonte. Eu me deliciava com o cheiro do orvalho da noite que umedecia a terra exalando um aroma que só os moradores de zona rural que acordam cedo, conhecem. As várias espécies de pássaros cantando formavam uma sinfonia inigualável. Mesmo não conhecendo nada de música, eu fechava os olhos e permitia que aquele canto entrasse pelos meus ouvidos e penetrassem até o mais fundo do meu ser. Caminhar por esta estrada, logo pela manhã, era o melhor do dia. Aliás, era a única coisa boa do dia.

Eu tinha doze anos. Meu corpo era alto e franzino. Meu cabelo espetado, meu semblante um pouco abatido, mas meus olhos transmitiam tanta vivacidade que chamava a atenção de todos a minha volta. Não havia TVs, tínhamos pouco acesso ao único radio de pilha da casa. Eu não sabia como vivia o restante das pessoas no mundo. Nem as que estavam na cidade mais próxima. Mas uma coisa no meu coração eu sabia: Tudo era muito sacrifício para eu, que na passava de uma criança frágil e mal alimentada. E com certeza eu e minha família éramos vitimas de muita injustiça social. Deveria haver um jeito de viver de um modo mais digno.

De longe já se via a plantação de algodão, todo branco. Parecia um lenço de linho alvo que se estendia por muitos alqueires de terra. Era ali que ficaríamos ate as 16.00h colhendo algodão e só parando para duas refeições; o almoço as 9.00 e o café as 13.00h. O almoço, em geral conservava-se morno e se constituía de uma boa concha de feijão, muito arroz e alguma carne ou peixe salgado. Já o chamado “café” era apenas uma caneca de café com um pedaço de pão caseiro, ou bolinho de chuva. Divino mesmo era quando minha mãe se dispunha a fazer curau e podíamos a regalia de devorá-lo no café da uma da tarde. Hum…ainda sinto o gosto daquele milho verde ralado, coado, colocado num tacho e engrossado no fogo, feito no quintal, sem nenhuma mistura, a não ser açúcar.

Mas pensar na comida era apenas uma saída fantasiosa para escapar por alguns momentos do tormento da tarefa de transferir os montinhos brancos das “maças” para o balaio que ia empurrando enquanto com as pernas enquanto as mãos não paravam a catação. Ou então era amarrado em minha cintura um saco que ia até os pés. Este saco ficava de tal forma a manter a abertura da boca aberta para facilitar o trabalho de jogar para dentro dele o fio precioso. Acontece que estas maças, se tornavam endurecidas, escuras e abriam em quatro partes, expondo todo seu conteúdo que parecia uma pluma branca com caroços escuros pelo meio. Na extremidade, cada parte tinha uma ponta aguda, que uma vez endurecida penetrava por baixo da cutícula ferindo toda a volta das unhas. Além de ferir, a medida que elas furavam, levantavam também a pele da cutícula, muitas vezes até sangrar. Meus dedos estavam sempre feridos e inchados em torno de todas as minhas unhas. Mas não tinha escolha a não ser enfrentar esta situação do nascer do sol até o entardecer. No final do dia tínhamos que pesar todo o algodão e anotar o peso. Nosso soldo vinha por quilo de algodão colhido e empacotado em fardos. E foi nesta situação também que comecei a conhecer o jeitinho (desonesto) brasileiro. Meu pai sempre jogava a água que sobrava dentro dos fardos. Isto sem contar que muitas vezes, os fardos se transformavam em banheiro masculino. Apenas dos homens que nesta situação eram privilegiados pela anatomia do corpo humano que facilitava o esvaziar a bexiga dentro dos fardos.

Sei que é maravilhoso vestir uma camiseta ou deitar sobre e sob lençóis mil, três mil, fios de algodão. É bom também observar quantas utilidades que tem um chumaço de algodão. Mas jamais me esquecerei do sono interrompido na madrugada e dos meus dedos feridos enquanto colhia o algodão que dali iam em fardos em cima de caminhões “trivelato” para as industrias de fiação e tecelagem.

Hoje, as colheitas de algodão, na maioria dos países acontecem, de forma mais mecanizada e diferente. Mas com certeza ainda existem muitas crianças levantando as quatro da manhã para o trabalho.

8 Comments

  • Waldir Martins Machado disse:

    Ah! Fui levado à minha infância quando vivia e trabalhava em uma fazenda em Jequitibá-MG. Mas meu trabalho era com gado. Parabéns Esther!

  • Fábio Araujo disse:

    Ola Esther! Sempre passo pelo seu Blog. Seus textos são muito bons! E muito legal ler o texto e ir imaginando as cenas. Este texto me remeteu também a minha fase de criança quando ia com meu pai para a roça. Lembro-me bem de acordar as 6:00, e também chegar na cozinha e ter um cafe forte sendo passado, fogão de lenha espantando o frio e aquelas linguiças penduradas em cima do fogão de lenha. Depois ir para o curral, moer capim e misturar com ração, encher o balaio e distribuir no cocho para as vacas se alimentarem. Admito que eu colocava um pouco mais no cocho das vacas que eu achava mais legal! hehe. Enquanto elas comiam iamos tirando leite! Enchiamos as caçambas, carregavamos a carroça e partiamos em direção ao ponto onde esperavamos o caminhão passar para recolher o Leite que era levado para cidade. De volta para fazenda já com uma fome grande, não tinha nada melhor que ser recebido pela minha vó com um delicioso almoço!

  • Fábio Araujo disse:

    Ester gostei tanto do seu texto que inspirado nele escrevi também uma lembranç de criança. Meu texto sera divulgado no blog de jovens da minha igreja e se quizer, pode divulgar aqui em seu Blog. Segue:

    Um dia na roça – Em homenagem ao meu pai.
    Hoje pela manhã eu li um excelente texto no Blog da Esther Carrenho onde ela descreveu uma de suas historias da época de criança. É lógico que a leitura me remeteu a minha fase de criança e me fez lembrar a época em que meu pai me levava para a roça nos finais de semana e férias.
    Lembro-me bem de acordar as 6:00, ainda com muito sono, mas empolgado com as atividades na fazenda. Saia da cama, colocava uma calça, camisa de manga comprida e a minha bota sete léguas vermelha! Como eu tinha orgulho daquela bota! Sentia-me poderoso quando terminava de calçar. No caminho para cozinha, eu já sentia aquele cheiro de café forte sendo passado. Lá, encontrava com meu pai enquanto meu avô já estava no curral, ele sempre acordava mais cedo do que todos. Enquanto o café passava, feito em um grande fogão de lenha que aquecia a cozinha, eu sentado, observava aquela cozinha antiga e com detalhes peculiares. A coleção de canecas de variados modelos penduradas e muito bem organizadas chamava minha atenção, eu gostava muito das cores variadas. Acima do fogão, dois arames amarrados ao teto desciam e seguravam um pedaço de pau onde eram penduradas linguiças e carnes que seriam consumidos no almoço. O teto, sem laje, com telhas velhas e com uma grande comunidade de aranhas que se espalham por todos os cantos! O emaranhado de teias era ótimo pois ajudava no combate aos mosquitos que passeavam por ali. Na janela um vidro quebrado, e na porta a dócil Susana com seus belos pelos brancos e sujos e sempre com aquela cara de esperança de que receberia alguma sobra do café da manha. Depois de muito observar, pegava uma das belas canecas (minha preferência era a de alumínio) tomava café com leite, leite puro, direto da vaca, comia um pão com manteiga, jogava um pedacinho para Suzana e ia caminhando com meu pai para o curral me sentindo o verdadeiro Rei do Gado.
    Agora sim, hora de trabalhar! Era o máximo ajudar meu pai ou o retireiro a moer o capim naquela máquina barulhenta que ia cuspindo o capim moído. Eu pegava um balaio, enchia de capim, mas não tinha força para carregar e levar até o cocho, a propósito, o cocho para a Vaca é o mesmo que o prato para os homens. Meu pai levava o capim, jogava nos cochos e me deixava incumbido de misturar a ração no capim, eu realizava a atividade com satisfação, no cocho de cada vaca. Admito que por minha conta, sem o aval do meu pai e avô, que recomendavam colocar a mesma quantidade de ração em todos os cochos, eu sempre jogava uma quantidade maior de ração no cocho de duas vacas que eu tinha preferência por serem extremamente bonitas! Uma era a Itália, uma linda vaca Jersey, pequena e meiga, marronzinha e com uma mancha branca na testa. A outra era a Brasília, vaca toda preta, com pequenas manchas brancas, era grande e forte, impunha mais respeito do que muito Touro. Refeição preparada e lá estavam todas as vacas, perfiladas e com uma “boca boa” comiam com muita alegria! Era tão prazeroso ver aquela cena que eu sentia vontade de comer aquele capim com ração também!
    Enquanto comiam, todos trabalhavam. Meu avô tirava leite, eu ajudava tocando os bezerros que iam ao encontro da mãe para mamar e, meu pai, que apesar de não ser veterinário, aplicava injeções em algumas vacas que precisavam de algum tipo de tratamento. Falando em pai, desde aquela época até hoje eu sempre sentia orgulho dele, olhava para uma pessoa que sabia de tudo e pensava: Quero ser como ele! Com as atividades no curral finalizadas, as vacas eram soltas para o pasto e era uma apreensão. Tínhamos que ter cuidado para que o Touro bravo Jerônimo não entrasse no curral. Admito que sentia medo. Mas se eu estava montado no Bainho, ai era tranquilo! Vacas no pasto, agora era hora de pegar as caçambas cheias de leite, carregar a carroça e partir para o ponto onde encontrávamos com o caminhão que levava o leite para a cidade. No decorrer do caminho, que não era muito longo, eu sempre gostava de descer e abrir a porteira, mesmo sabendo que era quase certo de que o guia da carroça iria fazer ora e sair correndo com a carroça enquanto eu fechava a porteira, ainda mais se este guia fosse meu primo Tiago. Eu não sentia medo, pois sabia que se ficasse para trás a Suzana estava comigo! Ela sempre nos acompanhava.
    De volta á fazenda, era chegada a hora de um momento sublime, o almoço! Eu chegava á cozinha esganado, com muita fome, e lá estava meu avô, meu pai e minha linda avó, que preparava uma refeição maravilhosa!(arroz, feijão, couve, angu e linguiça) Almoço servido, barriga cheia e uma sensação de dever cumprido.
    Estas boas lembranças da roça me trazem uma reflexão do quanto Deus foi bom para mim durante a minha infância. Este simples texto escrevo em homenagem ao meu pai, Eliseu, que me proporcionou estes momentos maravilhosos e que nunca mediu esforços para me ver feliz! Ser conduzido por caminhos corretos, ensinado a ser uma pessoa justa, com valores sólidos! Isto é uma dádiva! Obrigado Senhor!

    Divulgar no blog e no grupo e incentivar as pessoas a contar uma historia de criança com homenagem a alguém. Esta historia será editada e colocada no blog dos jovens.

  • Roselia Ramos disse:

    Sua história mistura aquisição de conhecimentos e amadurecimento, sofrimento, alegria nas pequenas coisas, esperança. O relato é vívido, me fez sentir o fresquinho da madrugada, a beleza do nascer do sol, o despertar dos pássaros. Imaginei a sua dor e a vontade que muitas vezes você, provavelmente teve, de sair correndo para brincar, comer ou apenas descansar. Crescimento sofrido, mas relato que emociona, porque demonstra um dos motivos que a fez tornar-se uma grande mulher… em alma e coração.

  • Esther, não te conheço, mas pude conhecer um pouco de você nas poucas linhas desse texto que me emocionou. Mostrando uma história que foi contado por meus pais, através dos olhos, pois eles nunca conseguiram ou não queriam, transcrever como fora a infância deles.

    Me emocionei muito e gostaria de parabenizá-la pela excelente transcrição.

    Forte abraço,

Leave a Reply to Robson Oliveira Cancel Reply